Escravos da moda: os bastidores nada bonitos da indústria fashion
Na semana da moda, os comediantes do Porta dos Fundos fizeram um vídeo tratando alguns aspectos nada bonitos do mundo da moda: a utilização de mão de obra infantil e escrava. Veja o vídeo:
Com 80 bilhões de peças de roupa vendidas por ano, a indústria da moda mantém uma fórmula que combina o consumo desenfreado com a exploração da mão de obra
uando publicou Tempos Difíceis, em 1854, o escritor britânico Charles Dickens utilizou a história de personagens como Blackpool para descrever as mudanças econômicas e sociais vividas pela Inglaterra do século 19, quando a criação da máquina a vapor aumentou a produção de mercadorias de modo exponencial.
Com a tecnologia veio uma nova relação econômica, fundamentada em uma troca: os operários cediam seu tempo e a força de trabalho enquanto os donos das fábricas ofereciam um salário pago mensalmente. Negociação que não era das mais justas, se contar o expediente de 14 horas por dia, o ambiente infestado pela fumaça do carvão que alimentava os teares mecânicos, o risco de morrer com a má operação da máquina e, claro, a baixa remuneração oferecida: uma ínfima parte dos ganhos do patrão.
O problema é que, mesmo após mais de 160 anos da publicação da obra, a história de Stephen Blackpool ainda não se tornou assunto restrito às discussões acadêmicas de literatura. Shima Akhter tinha 12 anos quando saiu de seu vilarejo para morar com uma tia em Daca, capital de Bangladesh, país localizado no Sudeste Asiático com população superior a 150 milhões de habitantes.
Ela era uma entre os 4 milhões de habitantes do país que trabalham na confecção de roupas para o mercado externo — de acordo com a Organização Mundial do Comércio(OMC), Bangladesh é o segundo maior exportador de vestuário do mundo, com um volume de US$ 28 bilhões em transações, e 85% da mão de obra é formada por mulheres. Com um salário inferior a US$ 3 por dia, Shima e outros colegas uniram-se para pedir melhores condições de trabalho e entregaram uma lista de propostas aos supervisores da fábrica.
A negociação entre trabalhadores e patrões não demorou muito a ser resolvida: os gerentes fecharam as portas da confecção, reuniram quase 40 pessoas e atacaram Shima e seus colegas utilizando cadeiras, pedaços de pau e tesouras. A história da trabalhadora de 23 anos foi relatada no documentário True Cost, dirigido pelo norte-americano Andrew Morgan.
No filme, a cadeia produtiva da moda é destrinchada para explicar como o poder cultural das roupas é utilizado por grandes redes varejistas para estimular o consumo desenfreado e aumentar suas margens de lucro enquanto produzem peças a baixo custo por meio de força de trabalho barata.
Desde a década de 1990, quando a Nike foi acusada de utilizar trabalho infantil em fábricas na Ásia, a falta de ética no processo de fabricação de mercadorias por grandes empresas é discutida pela sociedade. O problema é que o questionamento costuma resistir apenas até a primeira promoção imperdível no shopping.
“A roupa não fala, mas ela transmite uma informação: ao vestir determinada peça, você pode ser reconhecido como uma pessoa bem informada ou que tem dinheiro para comprar, por exemplo”, afirma João Braga, professor de História da Moda da Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo. “Como um fenômeno capitalista e ocidental, o desenvolvimento da moda também surge com o conceito de prestígio e ascensão social.”
Por falar em capitalismo, as mudanças que aconteceram no sistema a partir da década de 1980, com a descentralização da produção e negociações feitas em escala global, são a principal razão para entender como a indústria da moda criou um novo padrão de consumo, sustentado com base em um tripé: baixo custo de produção, rápido escoamento da distribuição e preços atrativos — anualmente, cerca de 80 bilhões de roupas são vendidas em todo o mundo, média superior a 11 peças por habitante da Terra.
Com mais de 6,6 mil lojas distribuídas em 88 países e faturamento em vendas que chega a quase US$ 15 bilhões, a rede espanhola Zara é uma das empresas precursoras da fast fashion, nome dado a essa nova maneira de consumir a moda. Criada em 1975 por Amancio Ortega, dono de uma fortuna de US$ 67,1 bilhões e quarto homem mais rico do mundo, a marca inovou ao adaptar para a indústria têxtil as lições da montadora japonesa Toyota, que desenvolveu um sistema de logística para eliminar os grandes estoques das fábricas. "A Zara produz 11 mil modelos diferentes de roupas por ano e renova sua vitrine de modo permanente, esse é o seu segredo de marketing”, explica Roberto Minadeo, doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de um estudo sobre a empresa espanhola.
Se as grifes tradicionais europeias lançavam coleções de roupas de acordo com as estações do ano, as marcas de fast fashion despejam no mercado novos produtos a cada semana. “A Zara trabalha com o que há de mais atual na moda: assim que ocorre um desfile ou tão logo alguma celebridade aponta para uma possível demanda, ela já coloca produtos com uma estética similar em suas lojas”, diz Daniela Delgado, consultora de moda e marketing.
Tudo isso a preços relativamente acessíveis para uma parcela considerável da sociedade: enquanto um vestido da grife francesa Dior custa por volta de R$ 9 mil, um modelo similar da Zara sai por apenas R$ 300 — na Europa, peças vendidas pela marca espanhola chegam a custar € 10 (ou R$ 44).
O ritmo de comercialização imposto por essas redes de varejo causou impacto em empresas tradicionais no ramo. Fundada no século 19 e fabricante de itens de luxo, a britânica Burberryafirmou neste ano que disponibilizaria suas novas coleções logo após a realização dos desfiles, tendência acompanhada por outras grifes, como Tommy Hilfiger, Versace e Marc Jacobs.
“As pessoas costumavam ir uma vez por ano às lojas, mas então inventaram duas, três, quatro novas coleções, e agora o fast fashion renova suas prateleiras com novidades todos os dias”, afirma Isabella Prata, fundadora da Escola São Paulo, que organiza cursos sobre economia criativa. “As marcas querem que a experiência de visitar uma loja se repita, para aumentar a chance de compra de um novo produto.”
E com esse mercado de cores, texturas e novidades, não surpreende que você se esqueça da história de Shima Akhter. Mas algumas tragédias são impossíveis de ignorar: em abril de 2013, por exemplo, um prédio de oito andares desabou na periferia da capital de Bangladesh, matando 1.133 pessoas. Conhecido como Rana Plaza, o edifício abrigava cinco fábricas de confecção de roupas e empregava mais de 2 mil trabalhadores, que produziam itens para empresas como Walmart e Primark — o salário mensal era de aproximadamente R$ 360, com jornadas de trabalho de 10 horas durante seis dias da semana.
Pouco antes do desabamento, os funcionários relataram o aparecimento de rachaduras nas paredes do prédio aos gerentes, mas eles decidiram seguir trabalhando normalmente. “Para diminuir os custos da produção, as grandes corporações descentralizaram sua produção”, destaca Marcela Soares, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Ao longo dos anos 1980, essa pulverização se deslocou para países em que não existiam leis trabalhistas ou muita tradição sindical.”
Meses após o desastre no Rana Plaza, um incêndio em outra confecção de Bangladesh causou a morte de nove trabalhadores. Pressionadas pela opinião pública, as grandes marcas de fast fashion afirmaram que controlariam a sua produção de maneira mais cuidadosa. Por sua vez, a Justiça de Bangladesh iniciou, em janeiro deste ano, um processo legal contra Sohel Rana, dono do Rana Plaza, além de 40 envolvidos na tragédia, como gerentes e oficiais do governo que sabiam dos problemas estruturais do edifício. Depois do julgamento, os réus poderão ser condenados à prisão perpétua.
De acordo com o documentário True Cost, na década de 1960, 95% das roupas vendidas nos Estados Unidos eram fabricadas em território norte-americano, enquanto hoje esse percentual não passa de 3%. Enquanto a produção é deslocada para outros locais, as empresas continuam com seus quartéis-generais nos países de origem, responsáveis pela idealização de novas coleções, análise do controle de qualidade e, claro, arrecadação dos lucros.
Entre as cinco maiores nações exportadoras de vestuário em 2014, quatro estão localizadas no Sudeste Asiático: a China, com US$ 173,4 bilhões em exportações, ainda lidera o ranking por conta das zonas econômicas especiais criadas pelo Partido Comunista Chinês para impulsionar o desenvolvimento industrial.
Ao longo dos anos, no entanto, o crescimento do país ocasionou um aumento gradual dos salários e das condições de trabalho. O resultado foi que as grandes confecções se mudaram imediatamente para países como Bangladesh, Vietnã e Camboja, onde a competição por postos de trabalho mantinha os salários baixos e, consequentemente, as margens de lucro mais altas — em 2015, oficinas de roupas também se expandiram para a África, com a instalação de fábricas na Etiópia.
Em artigo publicado na revista norte-americana Jacobin, a pesquisadora Anna Plowmanassocia o aumento das fábricas de Bangladesh às mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global: inundações nas plantações e a degradação do solo obrigaram os camponeses a migrar para a capital do país em busca de uma nova ocupação, como foi o caso de Shima Akhter.
E se a jovem foi agredida por seus patrões depois de pedir melhores condições de trabalho, pior sorte tiveram os manifestantes que, em janeiro de 2014, protestavam pelo aumento do salário mínimo em Phnom Pehn, capital do Camboja. Os funcionários do setor têxtil do país asiático pediam uma remuneração de pelo menos US$ 160 mensais, enquanto o governo oferecia US$ 95. A polícia disparou munição real contra os trabalhadores, ocasionando em três mortes.
De acordo com dados divulgados pela Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX), os pontos de vendas de roupas no Brasil são pulverizados: pouco mais de 20% do mercado é controlado por grandes redes varejistas, enquanto cerca de 30% dos vendedores vivem na informalidade, como sacoleiros e camelôs. Quase metade do mercado, portanto, é formada por comércio de bairro e redes locais. Nos últimos anos, grandes empresas de fast fashion, como H&M e Uniqlo, cogitaram abrir lojas no Brasil, mas o alto custo de operação e a competição com outras multinacionais fizeram com que os executivos das companhias mudassem de ideia.
CUSTO BRASIL
De acordo com informações da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit), quase 85% do vestuário consumido no país é produzido por fábricas instaladas aqui mesmo. Com faturamento de US$ 55,4 bilhões em 2014, o Brasil é o quarto maior produtor de roupas do mundo, gerando 1,6 milhão de empregos — 75% da mão de obra é composta de mulheres.
o Brasil é o quarto maior produtor de roupas do mundo"
“Esse é um setor estratégico: diga uma cidade do país em que não tenha pelo menos uma lojinha para vender roupas”, afirma Rafael Cervone, presidente da Abit. De fato, o setor conta com 160 mil postos de venda espalhados pelo Brasil, emprega quase 1,5 milhão de pessoas e vendeu 6,5 bilhões de peças em 2014.
Porém, apesar da importância para a economia nacional, o setor também sofre do mal da equação “produção rápida + preço baixo”. Em janeiro deste ano, o Tribunal Superior do Trabalho condenou uma confecção ligada ao grupo Riachuelo a pagar uma indenização no valor de R$ 10 mil a uma funcionária que ganhava um salário de R$ 550 e cumpria metas diárias como a colocação de 500 elásticos em calças por hora ou a costura de 300 bolsos no mesmo período.
Por conta do ritmo de trabalho, a funcionária, do Rio Grande do Norte, sentia dores nas mãos e nos braços, mas era medicada com analgésicos na enfermaria da empresa e obrigada a retornar ao trabalho. Ela também recebeu o direito a uma pensão mensal por conta dos prejuízos causados pelas repetições de movimentos durante a confecção das calças.
Casos mais graves envolvendo grandes marcas também foram registrados quando, em 2011, uma inspeção conduzida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) encontrou imigrantes bolivianos e peruanos expostos a condições análogas à escravidão trabalhando em uma oficina de roupas que produzia peças para a Zara na cidade de São Paulo.
Além das longas jornadas de trabalho, que chegavam a até 16 horas por dia, os trabalhadores precisavam pedir autorização para sair de casa. Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada pela Assembleia Legislativa de São Paulo em 2014 para discutir o trabalho escravo contemporâneo, a Zara admitiu a contratação de fornecedores irregulares para realizar os serviços de confecção.
“O objetivo, ao utilizar mão de obra escrava, é a maximização do lucro e a obtenção de vantagem em relação aos concorrentes”, afirma o procurador do trabalho Rafael Garcia Rodrigues, que está à frente da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo(Conaete), iniciativa do Ministério Público do Trabalho (MPT). A legislação brasileira é considerada uma das mais avançadas do mundo no combate ao trabalho escravo contemporâneo, e caracteriza esse crime partindo de quatro situações: jornada exaustiva, servidão por dívida, trabalho forçado e condições degradantes no ambiente laboral.
De acordo com dados do MPT, dos 14 termos de ajustamento de conduta realizados em 2015 em São Paulo por condições análogas à escravidão, dez eram referentes a empresas do setor têxtil — nesses termos, os autuados se comprometem a resolver o problema ou compensar danos e prejuízos já causados. “Verificamos que não adianta responsabilizar a última camada da cadeia produtiva, já que aquele dono de uma oficina da periferia de São Paulo não é quem realmente lucra com a exploração”, diz a procuradora do trabalho Christiane Vieira Nogueira, vice-coordenadora do Conaete. “Também é necessário responsabilizar as grifes, que exercem um controle muito grande no modelo de produção.”
Em julho de 2014, o MPT protocolou uma ação civil pública que determinava multa no valor R$ 10 milhões contra a marca M.Officer, depois de uma investigação que percorreu diferentes pontos da cadeia produtiva de roupas da empresa. Em 13 de novembro de 2013, representantes do Ministério Público e policiais civis realizaram uma fiscalização em uma oficina de costura no bairro do Bom Retiro, tradicional centro de confecções têxteis da cidade de São Paulo.
Imigrantes paraguaios e bolivianos trabalhavam no local, que também servia de residência — no quarto da família de origem boliviana havia apenas uma cama, em que dormia o casal e duas crianças. “As condições de trabalho, saúde e segurança eram péssimas: instalação elétrica em más condições e material altamente inflamável sem a devida segurança. Na única janela existente e que tinha visibilidade para a rua, havia um pano cobrindo a vista”, diz o processo. Os auditores verificaram que a oficina produzia exclusivamente para a marca M.Officer, com a presença de peças-piloto responsáveis por servir como modelo a ser reproduzido pelos trabalhadores. Os imigrantes tinham uma jornada diária que se iniciava às 7 horas e se estendia até às 22 horas, e eram remunerados de acordo com a produção das peças, recebendo R$ 850 por mês, em média.