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'Como fui traficada e virei escrava sexual nos EUA', por Shandra Woworuntu

Após perder o emprego, a indonésia Shandra Woworuntu decidiu emigrar aos Estados Unidos para recomeçar a vida trabalhando na indústria hoteleira. No entanto, ao chegar ao país, mergulhou em um mundo de prostituição e escravidão sexual.

"Cheguei aos Estados Unidos em busca de promessas e oportunidades. Fiquei animada de estar em um lugar que me lembrava os filmes e séries de TV. No desembarque, ouvi meu nome: um homem segurava uma placa com minha foto, tirada pela agência de recrutamento na Indonésia. O homem sorriu para mim calorosamente. Seu nome era Johnny, e me conduziria ao hotel onde eu trabalharia. O fato de o suposto hotel ser em Chicago e eu ter chegado em Nova York, a quase 1,3 mil km de distância, mostra o quão ingênua fui. Aos 24 anos, não tinha ideia do que estava para acontecer.

Depois de concluir um curso de graduação em finanças, trabalhei em um banco internacional na Indonésia como analista. Mas, em 1998, a Indonésia foi atingida pela crise financeira asiática e uma turbulência política tomou conta do país. Acabei perdendo meu emprego. Para sustentar minha filha de três anos de idade, comecei a procurar trabalho no exterior. Vi um anúncio em um jornal para trabalhar em grandes hotéis nos Estados Unidos, Japão, Hong Kong e Singapura. Decidi me candidatar a uma vaga nos EUA. A exigência era de que falasse um pouco de inglês e pagasse uma taxa de 30 milhões de rúpias indonésias (em 2001, US$ 2,7 mil). O processo seletivo foi demorado, várias entrevistas e, dentre outras coisas, me pediram para andar para cima e para baixo e sorrir, porque 'o atendimento ao cliente era a chave para esse emprego'. Passei por todas as etapas e consegui o trabalho. O plano era que minha mãe e minha irmã cuidassem da minha filha enquanto eu trabalhasse fora, por seis meses, ganhando em torno de US$ 5 mil por mês. Então, voltaria para casa para cuidar da minha filha.

REALIDADE

Cheguei ao aeroporto internacional de Nova York com quatro outras mulheres e um homem. Fomos divididos em dois grupos, Johnny pegou todos os meus documentos, incluindo meu passaporte, e me levou para seu carro com duas outras mulheres. Um motorista nos levou para o bairro do Queens e parou em um estacionamento. Johnny disse para nós três sairmos do carro e entrarmos em outro, com um motorista diferente. Fizemos exatamente o que ele mandou, e vi pela janela o novo motorista dando dinheiro a Johnny. Pensei: 'Alguma coisa não está cheirando bem', mas não me preocupei, pois achei que fosse algum tipo de burocracia do hotel. O novo motorista não nos levou muito longe. Estacionou do lado de fora de um café e, de novo, nos mandou sair do carro e entrar em outro. Novamente, uma troca de dinheiro. Então, o terceiro motorista nos levou para uma casa e voltamos a trocar de carro. O quarto motorista tinha uma arma e nos obrigou a entrar no carro. Fomos para uma casa no Brooklyn. Ele fechou a porta e gritou: 'Mama-san! Menina nova!'. Eu estava muito assustada, sabia que 'mama-san' significava cafetina. Por causa da arma, não havia como fugir. A porta estava aberta, e vi uma menina, talvez com 12 ou 13 anos, deitada no chão gritando enquanto um grupo de homens se revezava para chutá-la, com o nariz sangrando, ela gritava. Um dos homens me olhou e sorriu ironicamente, como ameaça, começou a brincar com um taco de beisebol.

PROSTITUIÇÃO

No dia seguinte, Johnny apareceu e se desculpou por tudo o que tinha acontecido conosco. Fomos tiras fotos para nossas cédulas de identidade. Depois seríamos levadas para comprar uniformes e partiríamos rumo ao hotel em Chicago onde começaríamos a trabalhar. 'Todo mundo vai ficar bem, não vai acontecer de novo'. Acreditei. Depois de tudo o que tinha me acontecido, ele me pareceu um anjo. Um homem veio e nos levou para tirar as fotos. Dali, fomos comprar uniformes, mas era uma loja de lingerie, cheia de calcinhas minúsculas. Não havia nenhum uniforme. É engraçado lembrar-me desse episódio, sabia que mentiam para mim e que a minha situação era periclitante. Lembro-me de que dei uma volta pela loja, tentando ver se poderia escapar, mas eu estava com medo e não conhecia ninguém nos EUA, então, permaneci relutante em abandonar as outras duas indonésias que estavam comigo. Me virei e vi que elas estavam gostando do passeio. Então olhei para o meu cafetão e vi que ele estava armado, me observando. Ele fez um gesto para que eu não tentasse nada. Mais tarde, nosso grupo foi dividido. Fui levada embora por um carro, não para Chicago, mas para um lugar onde traficantes me obrigaram a fazer sexo; eles eram indonésios, taiwaneses, chineses malaios e americanos. Só dois deles falavam inglês – na maior parte do tempo, usavam linguagem corporal, empurrões e palavras cruéis. Uma coisa que me deixou aterrorizada naquela noite: um dos homens tinha um distintivo policial. Até hoje, não sei se ele era realmente da polícia. Eles me disseram que eu devia a eles US$ 30 mil e que pagaria US$ 100 toda vez que fizesse um programa. Nas semanas e meses seguintes, fui levada a diferentes bordéis, prédios, hotéis e cassinos na costa leste dos EUA. Raramente ficava dois dias no mesmo lugar e nunca sabia onde estava ou aonde ia. Esses bordeis aparentavam ser casas normais do lado de fora e discotecas do lado de dentro, com luzes piscantes e música alta. Cocaína, metanfetamina e maconha ficavam espalhadas pelas mesas. Os traficantes me faziam usar drogas sob a mira de armas, e talvez isso tenha me permitido suportar tudo o que me aconteceu.

DROGAS E VIOLÊNCIA

Vinte e quatro horas por dia, ficávamos sentadas, completamente nuas, à espera de clientes. Se ninguém chegasse, dormíamos um pouco, mas nunca numa cama. Era nesses momentos que os traficantes aproveitavam para nos estuprar, então, tínhamos de ficar alertas. Parecia que eu estava em um estado de constante dormência, incapaz de chorar. Sobrecarregada pela tristeza, raiva e desapontamento, obedecia às ordens e tentava sobreviver. Lembro-me da cena da menina sendo agredida, e vi os traficantes batendo em outras mulheres também quando elas causavam 'problemas' ou se recusavam a fazer sexo. Os traficantes me apelidaram de 'Candy'. Todas as mulheres traficadas eram asiáticas - indonésia, Tailândia, China e Malásia. Na maioria das noites, um dos traficantes me vestia como princesa e me levava a um cassino. Ele usava terno preto e sapatos brilhantes e andava como se fosse meu guarda-costas, com uma arma nas minhas costas. Entrávamos pelo lobby pela porta para dos funcionários e pegávamos o elevador de serviço.

VIGILÂNCIA

Lembro-me da primeira vez que eu entrei um quarto de um hotel-cassino. Pensei que poderia escapar, mas meu traficante me esperava no corredor e me conduzia aos quartos seguintes. Quarenta e cinco minutos em cada quarto, noite após noite. Como eu era complacente, não era agredida pelos traficantes, mas os clientes eram muito violentos às vezes. Alguns pareciam ser membros da máfia asiática, outros eram brancos, negros e hispânicos. De todas as idades, idosos a jovens universitários. Era propriedade deles por 45 minutos e tinha de fazer o que queriam, para não ser agredida. Era uma rotina difícil e dolorosa e estava fraca. Os traficantes só me alimentavam com sopa de arroz com uns poucos pepinos, e eu ficava drogada. A ameaça constante de violência e a necessidade de estar sempre em alerta também eram muito exaustivas. Meu único pertence – além do 'uniforme' – era uma pequena bolsa com algumas coisas: dicionário, pequena Bíblia, algumas canetas e caixas de fósforo que pegava dos quartos de hotéis, com os nomes dos cassinos. Eu mantinha um diário desde pequena. Escrevendo em uma mistura de indonésio, inglês, japonês e símbolos, tentava registrar o que fazia, aonde ia e quantas pessoas estavam comigo. Tentava manter o controle das datas, mas era difícil, porque dentro de bordéis não sabia se era dia ou noite. Minha mente só pensava em escapar, mas as oportunidades eram muito raras.

FUGA FRUSTRADA

Uma noite, estava trancada no sótão em um bordel em Connecticut. O quarto tinha uma janela aberta, então, fiz uma corda com os lençóis e minhas roupas e comecei a descer. Quando quando cheguei ao final da corda improvisada, vi que ainda estava a uma grande distância do chão, tive de voltar. Um dia, fui levada a um bordel no Brooklyn. Estava com uma menina indonésia de 15 anos, chamada Nina, que acabou se tornando minha amiga. Ela era um doce e linda. Estávamos conversando com uma mulher gentil no bordel, que disse que, se um dia conseguíssemos escapar, deveríamos ligar para um homem que nos daria um emprego para voltarmos para casa com algum dinheiro. Anotei o telefone dele em um pedaço de papel e o guardei. A conversa aconteceu enquanto ela nos falava da nossa dívida. Entrei em pânico, estava certa de que morreria antes de fazer sexo com os 300 homens necessários para quitá-la. Fechei meus olhos e rezei por ajuda. Pouco tempo depois, fui para o banheiro e vi uma pequena janela fechada com parafusos, mas eu e Nina abrimos as torneiras e eu usei uma colher para desaparafusá-la bem rápido. Conseguimos escapar. Ligamos para o número, e um homem indonésio atendeu. Assim como a mulher nos havia dito, ele prometeu nos ajudar. Ficamos muito felizes. Ele nos encontrou e nos colocou em um hotel. Falou também que deveríamos esperar até que eles achar um emprego para a gente. Ele cuidou de nós duas, trouxe comida e roupas. Mas depois de algumas semanas, tentou nos forçar a nos prostituir. Quando recusamos, ele ligou para Johnny para vir nos buscar. No fim das contas, também era traficante e trabalhava com a mulher que nos deu seu telefone.


RESGATE

Foi quanto finalmente tive um golpe de sorte. Perto do hotel, antes de Johnny chegar, consegui me desvencilhar do meu novo traficante e corri, descendo a rua, usando apenas chinelos e carregando minha bolsa. Virei e gritei para Nina me acompanhar, mas o traficante a segurou. Descobri uma delegacia e contei a um policial a minha história. Ele não acreditou em mim e me deu as costas. Disse que era perfeitamente seguro para mim voltar às ruas sem dinheiro ou documentos. Desesperada por ajuda, abordei dois policiais na rua e ouvi a mesma resposta. Então, fui ao consulado indonésio para buscar ajuda e emitir novos documentos. Eu sabia que tinham um quarto onde as pessoas podiam dormir em caso de emergência. Mas também não me ajudaram. Fiquei irritada e triste. Não sabia o que fazer. Tinha chegado no verão, mas o inverno se aproximava e estava com frio. Dormi dentro de uma balsa, no metrô e na Times Square. Implorei por comida a estranhos, e, toda vez que conseguia fazê-los prestar atenção em mim, contava minha história.

REVIRAVOLTA

Um dia, em um parque do bairro de Williamsburg, um homem chamado Eddy comprou comida para mim. Ele era de Ohio, trabalhava como marinheiro e estava de férias. 'Volte amanhã por volta do meio-dia', disse ele, depois que eu lhe contei a minha história. No dia seguinte, ele disse que havia feito alguns telefonemas em meu nome. Contou que havia falado com o FBI (a polícia federal americana) e eles haviam telefonado para o distrito policial local. E que nós deveríamos sair naquele minuto rumo à delegacia onde os policiais tentariam me ajudar. Dois detetives me sabatinaram. Mostrei a eles meu diário com os detalhes da localização dos bordéis e as caixas de fósforo dos cassinos onde era obrigada a me prostituir. Eles telefonaram, então, para a companhia aérea e a imigração, e descobriram que a minha história batia. 'OK', disseram eles no final. 'Você está pronta para ir?' 'Ir aonde?', perguntei. 'Pegar seus amigos', responderam. Entrei no carro de polícia e eles dirigiram até o hotel no Brooklyn. Dali em diante, tudo se desenrolou como um filme de Hollywood. Mas, em vez de assistí-lo da TV, pude ver tudo da janela do carro. Do lado de fora do bordel, havia policiais à paisana fingindo ser mendigos. Algumas perguntas me passaram pela cabeça: 'Será que eles poderiam pensar que eu estava mentindo? Será que eu poderia ser presa, em vez dos meus sequestradores?'. Um policial vestido como cliente apertou a campainha do bordel. Vi Johnny aparecer na porta e, depois de um papo rápido, abrir a grade de metal. Ele desapareceu na escuridão e, segundos depois, os policiais invadiram o prédio. Passada uma hora, me disseram que podia sair do carro e me aproximar do prédio. Eles cobriram uma das janelas com papel e cortaram um buraco através do qual podia espiar. Identifiquei Johnny e as meninas trabalhando no bordel, sem ser vista. Havia três mulheres ali, e Nina estava entre elas. Quando eu vi aquelas mulheres do prédio, despidas exceto pelas toalhas enroladas no corpo, foi o melhor momento da minha vida. Sob as luzes vermelhas e azuis dos carros de polícia, dançávamos e gritávamos de alegria.


Johnny foi acusado e condenado, assim como outros dois homens presos nos dias seguintes. O FBI intermediou meu contato com a Safe Horizon, uma organização de Nova York que ajuda as vítimas de crime e abuso, incluindo sobreviventes de tráfico humano. Eles me ajudaram a permanecer nos Estados Unidos legalmente, me ofereceram abrigo e me colocaram em contato com pessoas para conseguir um emprego. Poderia ter voltado à Indonésia, mas o FBI precisava que eu testemunhasse no julgamento dos traficantes, e realmente queria que eles fossem para a cadeia. O processo levou anos. Na Indonésia, traficantes foram me buscar na casa da minha mãe, e ela e minha filha tiveram de se esconder. Eles me caçaram por anos a fio. O perigo era tão grande que o governo americano permitiu à minha filha emigrar para os EUA. Finalmente nos reunimos em 2004. Em contrapartida por ajudar a prender os traficantes, recebi o direito de residir permanentemente no país em 2010. Na ocasião, me disseram que poderia escolher um novo nome, para minha própria segurança. Mas decidi manter meu nome antigo. No fim das contas, é o meu nome. Os traficantes me tiraram tudo – por que deveria desistir do meu nome?

TRAUMA

Depois de ter escapado, comecei a sofrer de dor nas juntas, enxaquecas terríveis, problemas de pele. Faz 15 anos desde que tudo aconteceu, mas ainda tenho insônia. Meus relacionamentos amorosos estão longe de ser normais. Faço terapia uma vez por semana, e, de quinze em quinze dias, me consulto com uma psiquiatra que me receita antidepressivos. Ainda tenho flashbacks, o tempo todo. O odor do uísque me faz vomitar e, se eu ouço alguns toques de celular – os mesmos que os traficantes usavam – meu corpo se enrijece de medo. Além disso, fico nervosa, a todo instante estou mexendo no meu anel para me acalmar. Não sou uma mulher feliz – e talvez nunca serei. Mas agora consigo lidar melhor com minhas memórias. Adoro cantar no cora, e cuidar dos meus filhos foi como um processo terapêutico. Minha menina agora é uma mulher – uma adolescente! – e tenho um menino de nove anos também.

NOVA VIDA

Decidi dedicar minha vida a outras vítimas de tráfico humano. Montei uma organização, a Mentari, que ajuda sobreviventes a se reintegrarem ao mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, tentamos alertar sobre os riscos de emigrar para os Estados Unidos. Especialmente entre pessoas que ainda veem o país como uma espécie de "terra dos sonhos". Já falei sobre a minha experiência em igrejas, escolas, universidades e instituições do governo. Também consegui mudar a lei que regula a contratação de trabalhadores no exterior. Agora, as agências de recrutamento têm de se registrar no Ministério do Trabalho antes de poderem operar. Além disso, precisamos educar as pessoas sobre tráfico humano. Muitas delas veem mulheres traficadas como prostitutas. E são vítimas, não criminosas. Ainda sou amiga de Nina, que hoje tem 30 anos. E guardei o número de telefone de Eddy, o homem que contou minha história ao FBI quando estava desesperada. Em 2014, no Natal, liguei para ele. Queria contar-lhe tudo o que havia acontecido comigo, mas ele me cortou e disse: 'Sei de tudo. Acompanho o noticiário. Estou muito feliz, você conseguiu reconstruir sua vida. 'Nem pense em me agradecer – você fez tudo sozinha'. Mas eu queria agradecer a ele, por ouvir a minha história naquele dia no parque e por me ajudar a recomeçar minha vida."




http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160330_escrava_sexual_eua_relato_lgb?ocid=socialflow_twitter

Saiba mais sobre o assunto

Clique aqui para conhecer a história de alguns dos pescadores resgatados! 

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