15 anos da Chacina de Unaí
Numa manhã de 28 de Janeiro de 2004, quatro funcionários do extinto Ministério do Trabalho: o motorista Ailton Pereira de Oliveira e os Auditores Fiscais do Trabalho Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva iniciavam o que seria uma semana de fiscalizações em fazendas na região de Unaí.
Unaí, num passado não muito distante, era uma região onde o cumprimento da legislação laboral, especialmente nas áreas rurais, seria algo impensado.
Tratava-se de região com episódios de graves conflitos pela posse da terra, inclusive com o assassinato de lideranças de trabalhadores rurais e onde imperavam relações laborais muito semelhantes àquelas predominantes na Colônia e no Império: Trabalho Análogo ao de Escravo!
A partir de meados da década de 90 o extinto Ministério do Trabalho, por meio da Auditoria Fiscal do Trabalho e com a inestimável parceria com o Ministério Público do Trabalho, passou a desenvolver política pública especialmente destinada àquela região: reuniões com trabalhadores e patrões e, especialmente, fiscalizações.
Esta iniciativa foi tratada pelo setor patronal com estranhamento e com tentativas de atuação política para que o poder público não atuasse e cumprisse com suas obrigações.
Buscou-se, por parte do Estado, a sensibilização do setor patronal sobre a necessidade de cumprimento das leis, especialmente daquelas obrigações legais relacionadas à garantia da dignidade dos trabalhadores: formalização das contratações, jornadas decentes, alojamentos dignos, fornecimento de alimentação adequada, fornecimento de Equipamentos de Segurança: botinas, luvas, óculos de proteção.
Construiu-se, inclusive, a possibilidade de contratação por meio do chamado “Condomínio de Empregadores”, possibilidade jurídica em que empregadores se unem para facilitar a contratação e garantia do cumprimento de suas obrigações legais.
Infelizmente, apesar das iniciativas do poder público, as resistências ao cumprimento da lei sempre foram uma constante. E neste sentido, os irmãos Mânica desempenhavam papel de destaque na resistência ao cumprimento das obrigações legais que garantiriam os direitos aos trabalhadores. Família poderosa, com poder político e econômico na região. Os Mânica já eram naquele período os maiores produtores de feijão do Brasil.
Apesar e principalmente em razão das resistências em cumprir a lei, tanto a Auditoria Fiscal do Trabalho quanto o Ministério Público do Trabalho intensificaram sua presença na região e de forma crescente atuaram sobre os empregadores que teimavam em descumprir a lei: autuações, multas, ações judiciais.
Como o número de Auditores Fiscais do Trabalho lotados na Gerência de Paracatu era pequeno, a Superintendência Regional do Trabalho organizava equipes com Auditores lotados em Belo Horizonte e em outras Gerências para apoiar os colegas lotados em Paracatu, Gerência responsável pela fiscalização na região de Unaí. Por este motivo, no dia 28 de Janeiro de 2004, lá estavam o motorista Ailton e os Auditores Eratóstenes e João Batista, ambos lotados em BH. Estavam ali para apoiar o Auditor Nelson em mais uma semana de inspeções.
A atuação do extinto Ministério do Trabalho, por meio de seus agentes públicos, sempre se realizou de forma republicana, havendo a percepção de que por mais complexa e tensa que fosse a relação com os fiscalizados, haveria o devido respeito aos agentes públicos, pois estes representam o Estado Brasileiro, representam autoridades públicas que atuam com garantias e prerrogativas constitucionais que visam que direitos laborais essenciais sejam garantidos.
Desta forma, o Motorista e os Auditores se deslocavam naquela manhã em uma caminhonete sem que fossem acompanhados por segurança policial. Imaginava-se que sua segurança fosse o fato de serem agentes públicos no cumprimento de seu dever.
Ledo Engano!
Estavam totalmente vulneráveis!
Fazia tempo que os Mânica, Antério e Norberto, já tramavam contra a vida de Nelson.
Por que contra a vida de Nelson?
Nelson, um agente público exemplar, sério, respeitoso e cumpridor dos seus deveres era Auditor Fiscal do Trabalho lotado em Paracatu e responsável pela organização e coordenação das ações fiscais realizadas na região.
Por tal motivo, Nelson, ao contrário dos demais colegas, sempre estava nas ações fiscais.
Nelson, um AFT, por acaso negro, tornou-se o alvo do ódio dos Mânica.
E os Manica, quem eram? Quem são?
Empresários, latifundiários, maiores produtores de feijão do Brasil, com poder econômico e político da região.
Sempre, em razão de tal poder, definiram quais leis deveriam ou não cumprir.
Ao terem seu poder questionado pelas instituições do mundo do trabalho e seus agentes, indignaram-se e não resignados decidiram por agir. Qual seria então o alvo a ser atingido por eles? As instituições do mundo do trabalho.
E quem melhor representava estas instituições? Sem dúvida o Auditor Nelson.
Assim, meses antes do fatídico 28 de janeiro, os Mânica de maneira ardilosa e sorrateira faziam as tratativas para que Nelson fosse assassinado, eliminado.
Intermediários foram definidos e articulados para que se fizesse a contratação dos pistoleiros que iriam eliminar Nelson.
Tudo meticulosamente preparado.
Contudo, no dia da execução algo inesperado aos mandantes e aos executores: Nelson não estava sozinho. Estava acompanhado de Ailton, Eratóstenes e João Batista
Como demonstraram as investigações, os executores indagam aos intermediários e mandantes sobre o que fazer. Consultada a hierarquia da quadrilha, a resposta: “- matem todos!”
E foi o que fizeram.
Em uma estrada vicinal os executores ardilosamente se aproximam da caminhonete em que estavam as vítimas e, com a desculpa de estarem perdidos na estrada e buscarem informações, fazem a abordagem.
Imediatamente dois pistoleiros se ocupam de cumprir a encomenda feita pelos Mânica: alvejam e matam os AFT Eratóstenes, João Batista e Nelson.
Atingem ainda o motorista Ailton, que perde sua consciência e aparenta estar morto.
Cumprida a encomenda, os pistoleiros fogem.
Recobrando sua consciência e mesmo diante daquele cenário de horror o motorista Ailton ainda é capaz de ligar a caminhonete e a conduzir até uma estrada asfaltada nas imediações.
Socorrido, foi levado ao hospital em Brasília. Foi capaz de relatar o acontecido, infelizmente não resistindo.
Rapidamente a notícia se espalhou e, em razão de o fato se constituir grave atentado ao Estado Brasileiro, a Presidência da República determinou imediata apuração dos fatos pela Polícia Federal com a participação do Ministério Público Federal e outras instituições, para que fossem capazes de em poucos meses determinar a autoria dos pistoleiros executores, dos intermediadores e especialmente dos mandantes: Antério e Norberto Mânica.
Neste momento há que se indagar: o que justificaria ato tão vil por parte de patrões insatisfeitos com a atuação do Estado que, por meio das fiscalizações e ações desenvolvidas pela Auditoria Fiscal do Trabalho e pelo Ministério Público do Trabalho, atuavam no sentido de garantir os mais básicos direitos dos trabalhadores na colheita do feijão?
Não nos restam dúvidas de que os Mânica entendiam que a região e seus interesses econômicos não deviam ser objeto de qualquer atuação dos agentes públicos que viessem a levá-los a ajustar suas condutas.
Os Mânica não são um ponto fora da curva. Sua maneira de ver as relações de trabalho e como a compreendem não constitui um fenômeno estranho à Auditoria Fiscal do Trabalho e às instituições públicas.
Eles representam certa parcela do setor patronal, herdeira da cultura escravocrata decorrente de mais de 300 anos da exploração da escravidão no Brasil.
Mesmo decorridos mais de 130 anos da libertação dos escravos, parte desses patrões vê os direitos trabalhistas e suas obrigações em cumprir a lei e garantir tais direitos como verdadeiro absurdo.
Para eles, oferecer trabalho desprotegido e sem garantias é um favor, uma generosidade que fazem aos trabalhadores.
Para eles, os agentes públicos responsáveis por exigir o cumprimento de direitos são como inimigos.
Inimigos que, se necessário, devem ser fisicamente eliminados.
Foi o que tramaram e fizeram!
Imaginava-se que tão odioso crime, praticado contra a sociedade e contra o Estado Brasileiro, uma vez apuradas as autorias, inclusive de Mando, seria objeto de rápida conclusão e condenação exemplar dos criminosos envolvidos.
Ledo engano!
O poder econômico e o desprezo à lei por parte dos mandantes se fizeram imperar.
Por um lado, os executores, os pistoleiros condenados e suas penas cumpridas.
Por outro lado: e os mandantes? E o cérebro do crime? E os Mânica?
Estes, decorridos 15 anos, continuam livres e soltos.
Soltos.
Mesmo tardiamente condenados pelo Tribunal do Júri a penas de cerca de 100 anos para cada um, utilizam-se à fartura dos recursos e sutilezas do processo penal, se mantendo distantes do cumprimento das penas impostas.
Socorrendo-se dos melhores penalistas, são exemplo daquilo que são o Direito Penal e o Processo Penal no Brasil.
Sempre é bom lembrar como é conhecido tal ramo do Direito em nosso país: Direito Penal é para PPP: Preto, Pobre e Puta.
Assim, os executores (Pobres que se dignaram a matar agentes públicos por dinheiro) foram presos, condenados e cumpriram as penas. Já os mentores, os contratantes, os escravocratas, estes estão livres.
Não lutamos por vingança!
Lutamos por Justiça!
Não nos interessa a justiça da espetacularização.
Do que adianta condenação dos mandantes pelo Tribunal do Júri com penas de cerca de 100 anos se a perspectiva é que não cumpram 100 dias? É de se lembrar neste momento a esperteza dos mandantes que, após a condenação pelo Tribunal do Júri, se utilizam das possibilidades oferecidas pelo Processo Penal e recorrem ao Tribunal Regional Federal em Brasília e ali, espertamente, Norberto Mânica apresenta um documento com registro em Cartório onde diz ter sido ele o único mentor da chacina, tentando livrar Antério de qualquer responsabilidade.
Indagamos: é crível que os advogados dos executores se utilizem de tamanha esperteza? Sim. Sem dúvida que é crível.
É aceitável que o Poder Judiciário, com base em tais sutilezas, anule o julgamento a que foi submetido Antério e diminua a pena de Norberto?
Não!
Não podemos aceitar como sendo algo ética e moralmente aceitável.
É claro que iremos sempre ouvir que somos desconhecedores das garantias dadas aos réus no processo penal.
Se tal argumento for verdadeiro, urge que se mude o Código de Processo Penal no Brasil.
Já me encaminhando para o fim de minha fala, não poderia deixar de buscar refletir com vocês sobre o significado da chacina e do momento que vivemos hoje em nosso país.
Como disse anteriormente, os contratadores de assassinatos, os Mânica, representam um determinado segmento do setor patronal que não reconhecem os direitos laborais, previstos em Convenções Internacionais, na Constituição Federal e na CLT como algo que deva ser observado.
Consideram tais direitos como um luxo, uma excres
cência que deva ser desconsiderada e aqueles que defendem tais direitos e sua aplicação são na verdade militantes ideológicos, gramscinianos.
Se em 2004 os Mânica e tal forma de pensar era algo que se expressava nas sombras, não é assim nos dias de hoje.
Ao contrário: o tipo de compreensão e ideias expressadas pelos mandantes da chacina são hoje lugar comum no Brasil.
Representam uma ideologia tosca, rudimentar e primitiva.
É uma ideologia que sequer consegue produzir conceitos e argumentos e se expressa a partir das cores.
Se manifesta assim:
Você deve usar rosa!
Você só deve usar azul!
Ninguém deve usar vermelho!
Carteira de Trabalho Azul, com direitos, nem pensar!
Carteira de Trabalho Verde-Amarela, para escravos, você pode usar!
Vivemos um cenário de destruição das estruturas estatais que visam fiscalizar e garantir o cumprimento da legislação laboral.
O Ministério do Trabalho, uma das mais antigas e tradicionais estruturas públicas, é simplesmente extinto e suas competências distribuídas por outros Ministérios.
A Auditoria Fiscal do Trabalho, que possui hoje cerca de 1/3 de seus cargos vagos, caminha em passos céleres para sua “quase extinção”.
Isto deveria nos fazer pensar, refletir sobre para qual estrutura governamental foi encaminhada a Auditoria Fiscal do Trabalho.
Para o Ministério da Economia!
A mim me parece algo novo e simbólico:
Não mais, como em certo passado recente, se coloca a raposa para tomar conta do galinheiro.
Não! É muito mais ousado.
O galinheiro foi deslocado para dentro do “raposário”, ficando sob o controle direto das raposas.
E as propostas e discursos de altas autoridades da República propondo o fim da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho?
É lamentável, mas precisamos assumir os fatos.
A ideologia escravocrata dos Mânica, antes presente nas sombras agora se torna algo à luz do dia, presente e dominante nos discursos e iniciativas, inclusive de partes expressivas do Estado Brasileiro.
Para finalizar:
É certo que estamos aqui hoje para prantear as vítimas da chacina e para denunciar a crueldade cometida!
É certo que estamos aqui para denunciar o trauma que ainda e sempre vivenciarão os familiares e os colegas!
Finalmente, é certo que estamos aqui para denunciar o atentado que cometem contra os direitos dos trabalhadores, negando conquistas históricas e buscando nos aproximar perigosamente de relações de trabalho típicas do século XIX, onde predominava a submissão dos obreiros ao trabalho escravo!
Que a morte de nossos colegas, que a memória do digno trabalho que realizavam nos sirva como inspiração para a luta em defesa dos direitos dos trabalhadores.
Se fizermos isso, a memória das vítimas estará sendo devidamente dignificada.
O compromisso da Auditoria Fiscal do Trabalho é:
Justiça para as vítimas de Unaí!
Justiça para todos aqueles que trabalham!
Convoco a todos neste momento para honrarmos a memória das daqueles mártires.
E, afirmemos todos, juntos, suas presenças.
Ailton!
Eratóstenes!
João Batista!
Nelson!
Muito obrigado.